Quem foi que matou o poeta (poema)

Lá tá ele no meio da rua 
gordo, coitado, corpanzil estirado 
todo, sobre o asfalto 
sirenes inda ouço 
focos vermelhos 
e azuis 
ta ti ta ta 
ta ti 
tata 

Seu policial 
só uma pergunta 
falou o repórter 
Nada a declarar disse o polícia 
circulando, circulando.
 
Não, seu doutor, desculpa aí,
foi tão do nada, né
Não vi não
assim falou seu José
De pedreiro
cheio a mão.

Um milagre que o carro sobreviveu! 
deu de comento a vendedora 
de pé de moleque 
apontando pra coisa
carnuda redonda
ceifada esfolada 
estirada na rua
bloqueando o fluxo
em plena contramão.


Nem sangue saia do morto
poeta.

Consternação?
ah, isso sim, 
mas sem choro 
que era poeta de pouca extensão. 

Sabe o nome? 
Não sei não, disse o ladrão 
apalpando no bolso da calça 
a magra carteira 
surrupiada 
do chão. 

Eu vi tu-tudo, eu vi tu-tudo 
disse o moleque 
que fedia a jornal 
e vivia enrolado 
em velha notícia
abaixo do viaduto 
Teixeira Amaral. 

Ah, foi pouco o interesse 
Notícia de segunda mão. 

Te citou aqui foi quem?
Disse o polícia
e roçou o cacetete
no coro
do sabichão.

Não parece um soldado 
o poeta
abatido e surpreso 
em meio à batalha 
por bala perdida
tombado no chão?

Suspirou num repente
Maria da Silva e João
A dona da carrocinha
balançando na direita 
churro quente
na esquerda 
um pastelão.

Mas só se for,
pensou o gari
no ele com ele
e os devidos botões,
bala calibre canhão.

Ah era poeta o pançudo? 
E de alcunha? 
Hm. Aí não sei. Nunca ouvi. 
Mas todo dia morre gente aqui,
meu patrão,
é jornaleiro e jornalista
é engraxate e sapateiro
é biscateiro e professor...
E poeta? 
Até hoje? 
que eu saiba 
ainda não. 

Assim falou Mascarenhas
E entornou um martelinho
Dando depois três batidas
Na madeira do balcão.


Mas sim, gritou o moleque 
com catinga de notícia
que faz dois ou mais de mês 
que se atirou ali da ponte
Da da da
Da da da
Da da da

- Da Cruz!
berrou o povo

Isso, Cruz
aquele tal compunista
o o o o 
O Gonzaga de Jesus! 

Ah, mas pra que tanta indiscrição!

Sai daí moleque gago
que ninguem te perguntô
Se quem morreu
que se matô.

Circulando, circulando!

Saiu noutro dia 
Larga manchete
no jornal 
A Sensação:
Faleceu o senhor 
Felisberto dos Santos
Souza Silva
Neto e Cunha 
Poeta de puro nome
Professor de profissão 
Nome da rua
Almeida Quevedo 
Esquina com
Siqueira Alemão
Atropelado 
ou morto 
Por 
anônimo
caminhão.

Ninguém deu muita atenção.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: