“alguém tenta noite após noite te salvar de te afogares na realidade” Jon Ståle Ritland

E DE NOVO SUCEDEU que Roberto despertou e tinha só mais sabor de palavra na boca. Pendia da ponta, mas a língua não conseguiu articular, que o sono ido levara consigo letra por letra, restara só mesmo gostinho. Gostinho dos bem bons, todo sabor de… Pois é, de, sabor de, só mais isso, de. Tinha se esvaído no piscar dos olhos, o nome. Escapulia pontual. Ficava só rastro, fantasma de ter sido. Mas certo que era redonda, a palavra, recheada, tipo bombom Sonho de Valsa. Riu. E quando foi ao banheiro, o resto de sonho seguiu, pairava ali, um cheiro,  bom, cheiro morno. Cheiro de… Café? Não, era mais. Mas esfumaçava um olho e outro, engasgava a notícia no jornal. E pulava, não, piscava o pirilampo palavra enquanto ele esfregava distraído o sabonete pelo corpo. Mas longe ia, o lume, muito vago. “Não posso esquecer de ir ao barbeiro”, pensou. A palavra acendeu de novo, mais tensa, e nesse mesmo se apagou. Ia passar o dia de novo assim, procurando, procurando? Em plena sexta? Pontadas de mal-humor. Nem por isso, antes de sair cumpriu de dar o  beijo no rosto de dona Inês. Boa ela, sentada de camisola no sofá. Só que, “espeta”, murmurou. O quê? Mas já tinha calado de novo. Dessa feita despediu o tchau, que a pobre há muito mal respondia mesmo. Caramujo? Lhe veio. Não, não era. Outra. E subiu do nada um nojo, feito ranço, coisa de gente mal acordada. Mas talvez por isso, ainda maior seu contentamento hoje quando saiu do shopping Flores Belas balançando na mão o potente copo de capuccino, arrastando consigo um rastro de aroma de canela. Canela? Café americano to go era tudo. Tudo. Não era ele então um agente do FBI, atarefado, conciso,  ruminando os indícios de um crime político, quem sabe, com abrangência mundial? Mas qual era mesmo a maldita da palavra? Agora nem nuvem mais era. Submersa, submersa. Submergiu. Nisso o trem partiu sem atraso. Bom dia. Bom dia. Tudo bem? Tudo bem? Chegou. É hoje! E trabalhou sôfrego, isso mesmo, trabalhou, naquele dia afoito, uma ânsia de concluir o que fosse, despachar, expedir, por ponto final, erradicar as reticências das pendências. Desejo de dar cabo, de organizar pastas pendentes, responder todos os e-mails. Não esqueceu nem de deletar os documentos que abarrotavam a caixa de lixo e, sem saber porque – vai que era que só para matar tempo – apagou entrada por entrada o histórico do browser. Com um gesto esquerdo embolotou a lista de tarefas bem cumpridas. Mas não logrou trazer alívio. Era comprida demais, a lista. E foi pouco jogava junto o cacto com vaso e tudo na lixeira, mas se conteve, ficou só na ideia. Nunca se sabe. Ou se sabe, só que nunca?  Afinal era só sexta. Cervejinha? Só que não. Os fios da barba andavam coçando, muito. E a palavra deu uma fisgadela no estômago. Só de leve, levezinho. Nem por isso. Subiu então pontual no trem. Apeou. Emergiu. E  foi sem mais rodeios ao barbeiro. Espeta, tinha dito ela, aquela que não falava mais muito. Mas nem por isso, aproveitou pra cortar também os cabelos. E os fios se despediam manchando a testa de preto, de cinza, faziam cócegas na ponta do nariz, insistiam em pinicar o pescoço, adentravam o colarinho. Despenteados, como nunca, se amontoavam sobre a barriga, outros fios mais ousados chafurdavam no chão da barbearia. Ele sentiu foi vazio, não leveza, no entanto, o Seu Roberto. Será fome? E veio a ideia. Sim, é hoje! Vou passar, sim senhora, no McDonald‘s, e passou. Marchou shopping adentro e pediu um Big Mac. Triplo Tasty. Com McFritas. Ah, e McNuggets. Pra levar? Pra levar, decidiu. E na pressa nem se deu pelas palavras que a McFuncionária sussurrou. Era urgente consumir as provas. E foi logo ali, na calçada do prédio, que devorou tudo, tudinho. Mac, mac, mac. Quem sabe dona Inezinha o visse lá do sétimo andar? Mas a esperança é vã. Sabia que arriscava o nada. Que a palavra não era coragem, isso ele sabia. Só Seu Messias fingiu que viu, roncando atrás da portaria. Roberto terminou tudo na beira do minuto e a luz do poste iluminou em foco a cena. Circulando! Circulando! Entrou. Seu Messias que fingia, disse Boa noite, Seu Rodrigo. O Seu Rodrigo disse Boa noite, Seu Messias! E subiu. Mal aberta a porta, a limpeza se atirou em seus braços, afoita, o repreendendo com mil beijinhos de Pinho Sol. Mas será mesmo, é possível, que alguém tenha lustrado folha por folha da samambaia do hall? Na sala, dona Inês de roupão, os cabelos escorridos, úmidos, cochilava toda imersa nos reflexos da tevê. O remorso estufou, deu peso. Foi, pé ante pé, a caminho do banheiro. Deu de castigo nos dentes, não poupou nem a gengiva. E o maldito telefone tocando, estridente, uma, duas, quatro, cinco vezes, no oco da sala de estar. Pra garantir, mastigou uma pastilha, não, duas, de Halls de menta. Extra Forte. Tinha que exterminar todo indício. Mas foi em vão. Tanto que, assim que pressionou o beijo na testa dela assoprando Boa noite, ganhou um nada de resposta, que andava há muito muda, a mulher. Só mesmo os tons da tela avivavam aquele rosto. Pareciam relâmpagos distantes anunciando tempestade. E de novo suspirou alívio. Não, mentira, suspirou foi desgosto. Inezinha não aspirou traição, muito menos tanto ardil. Nada desconfiou. Meu Deus, que dia! Nem pra isso era homem. Covarde? Não! Nada disso. A palavra era outra. Ele, nem tanto. Que diacho! E quando deu acordo de si já estava enrolado na coberta. Mas em vez de cair no sono, embalado pela surdez do quarto, no aconchego do pijama, procurou no seu mais íntimo extrair naquinhos de desculpas, palavrinhas de absolvição. E foi em meio a esse vasculhar, nesse fuçar, no tanto revolver e escarafunchar, que escorregou do suor ao sono no átimo de uma fração. E flutuou longe, num sono seco, para dentro da eira sem beira do sábado. Isso mesmo. Do Sábado.

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