…o dia é da delicadeza de um fino cristal, envolto em uma tal suavidade e leveza, que estática apenas olho perplexa o desenrolar musical das horas. Passeio de lá para cá no interior do quarto, no limite dessas paredes deixo-me conduzir pelo tempo, eu e as minhas roupas, eu e os meus móveis, eu e o silêncio. Tenho medo de sair, não quero ferir a pele branca, quase transparente da paisagem iluminada pelo sol lá fora.

…sento-me na poltrona com uma xícara de chá entre a concha das mãos, é como um pequeno corpo quente que mantenho preso entre meus dedos, uma vida delicada como um pássaro. Sim,  gestos gastos me consolam. Um gole e o líquido quente escorre pela garganta, deixando um sabor doce em minha boca. O aroma silvestre de pequenas frutas sobe com o vapor entorpecendo meus sentidos. Mas de repente o dia é ainda mais belo, e uma alegria inocente me invade. Algo em mim tornou-se mais puro, é como se tivesse quebrado uma regra. É como.

…mais um gole e olho através da janela, olho com a inocência de uma criança que sabe que está só e se arrisca, com os olhos bem abertos, sem pressa alguma, invadir os segredos proibidos. Do calor morno, aconchegante, quase sonolento que se espalha por meu corpo, ergo os olhos e contemplo o verde das árvores balanceadas de leve pelo vento, é uma imagem de frio. E lá no alto o céu, de um azul tão frágil, como enormes olhos azuis de uma criança triste, liso, plácido como as águas profundas do oceano. Imenso, já inclinando-se para o entardecer.

…não abro a janela, não me levanto do sofá. Olho o dia. O silêncio é um peso que me paralisa, sentada, estática, enquanto o vapor do chá dança a minha frente. No vidro da janela vejo refletidos lábios semi-abertos, olhos entediados. Mas olho o dia. Pensamento algum me atravessa, palavras seriam bruscas demais, romperiam a linha fina que me liga à luz do dia se deslocando lá fora.

…anônima contemplo a mão paternal e invisível do sol acariciando a copa das árvores, brilhando intensamente sobre  as folhas, diluindo-se nas sombras. É como música e cada gesto do sol soa como uma nota, de um momento para o outro um novo som, novas cores, um amarelo, um pardo, um ouro, um alegre decorrer de notas quentes sobre folhas vibrantes, logo depois um som constante e triste como uma melodia antiga espalhando-se sobre a floresta, escorrendo como gotas de chuva sobre o tronco das árvores, infiltrando-se no solo escuro e coberto de sombras. Escuto. A sinfonia do dia é um compasso de segundos, o único tempo que se pode compreender. É como um riacho de águas mornas e turbulentas me conduzindo através das horas, carregando-me para o mar infinito da noite.

…de repente vejo pessoas caminhando sobre o gramado, famílias, crianças correndo como que tomadas de uma alegria incontida, carros azuis, carros cinzas, carros deslizando ladeira abaixo, desaparecendo entre as árvores, e tudo isso, tudo isso chega até mim como uma recordação. Talvez apenas um sonho, uma paisagem ingênua vista através de um véu esvoaçado pelo vento. E nenhum som, nem ao menos uma risada me alcança, uma imagem muda. As bocas se movem sem intenção de palavras, como se a canção das horas transcorrendo fossem pensamentos plenos e claros soltos no ar, sendo carregados como plumas pelo vento. Ecos de distantes violinos atravessando a alma das pessoas, flautas sopradas pela brisa amortecendo o som rude das preocupações. E sem saber porque, sorrio, tomada de uma leve embriaguez. 

…olho os jovens jogando vôlei, meninas sentadas em círculo sobre a colina, as janelas fechadas das casas, filhos sujando suas roupas novas de domingo na areia do parque, um bebê com a boca escancarada se contorce, e eu sorrio, como se tudo isso fosse de uma harmonia tão delicada, que me desperta para sentimentos diáfanos como o amor. E é em mim. É em tudo.

E ao invés de palavras, minha boca se enche do sabor de maçãs, de cerejas, morangos, embriagando-me. Sorrio de olhos fechados porque a beleza da vida me arrebata em um profundo encantamento.

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