Entrevistando o João dos Doces

EU PROMETI a vocês apresentar aqui o trabalho do doceiro João Silvério, dono da confeitaria da Matta, a mais antiga no bairro Jardim das Macieiras, muita apreciada por gerações de crianças. Aliás, foi meu colega de redação, o Dunga, original daquele bairro, jardiniano da gema, por assim dizer, quem me despertou para a ideia. Ele disse: Tu não conheces o senhor das guloseimas? Não, eu disse. Nunca ouvi. Dunga revolveu exageradamente os olhos e, talvez, mera impressão minha, mas acho que até babou. Liguei, marquei horário: Até amanhã então senhor Pedro, falei sem me tocar do engano. João, corrigiu o doceiro, e acrescentou: João Silvério da Silva e Matta! Para rebentar logo após em sonora gargalhada. Mas pode chamar de Joãozinho mesmo, a criançada toda me conhece assim, por Joãozinho dos doces.

Confesso, não foi brincadeira achar a famosa confeitaria, perdi seguidas vezes a direção por aquelas ruas, e muito para ajudar, as informações dos transeuntes levavam a lugar algum, ou a todo lugar, menos à confeitaria da Matta. Prestes que estive a desistir, confuso e cansado, irritado mesmo, de tanto andar em círculo, ainda mais sob esse calor dos infernos. Estacionei o carro, sequei o suor que ardia, pus os óculos e já ia puxando do celular para avisar ‘Alice, chegarei hoje a tempo para o jantar’, quando, pronto, lá estava ela, a incrível loja, plantada em plena esquina da rua Floresta Imperial com a José Bento Lobato – vocês sabem, aquele advogado dos anos 30 que adorava contar histórias – dita e feita, sem tirar nem botar, como descrita por Dunga. 

Trata-se de casinha baixa, muito mimosa, teto e parede quase cobertos por arbustos de amora-silvestre. É ladeada à esquerda por um casarão antigo, aparentemente abandonado: porta selada por vigas, vidraças perfuradas por pedras certeiras. Ao fundo da confeitaria se estende um terreno baldio tomado de alto matagal. 

Bom, venha a caça ao caçador, falei de mim para mim. 

Já ao saltar do carro fui saudado por nuvens de odor adocicado. Ao adentrar a confeitaria meu coração de fato quase estancou, a boca inundada de um tanto, que só a muito custo evitei que transbordasse. Diante daquela visão multicor de doces, tudo arranjado sobre bandejas de cristal e multiplicados ao infinito por espelhos, vejam só, os olhos não se contiveram e verteram salgadas notas. Não é que tudo ali me sorria? Tudo piscava, não, brilhava, mimava, por trás de tortas e quindins surgiam ecos de risadinhas, ranger de balanços, respingo d‘água, em uma inocência colorida como se a infância jamais tivesse cessado de ser.  Morrer na Matta, senti, seria morrer no paraíso. E foi o que de fato quase sucedeu, quando no mais que de repente uma gargalhada trovejou detrás de uma pirâmide de macarons. Ah, o senhor dos açúcares, pensei aliviado. Saudou-me entusiástico e foi logo me empurrando à cozinha. E foi lá, entre panelões, potes de vidro e sacos de nozes em penumbra que demos início à entrevista. 

Não havia prometido?

 Só que logo, digo, de imediato à primeira pergunta, fui surpreendido por um imprevisto… lá no fundo, junto a um grande fogão, avistei uma figura de mulher. Pra ser preciso, de uma senhora, já que um tanto encurvadinha pelos anos. No que pude distinguir, totalmente submersa no afã de cristalizar maçãs. 

– Deixa disso, mulher. Traga cá pra nós uns adoçados…

E largou o afazer e veio juntar-se a nós com uma bandeja de brigadeiros. 

Sei, prometi escrever sobre o dono, mas é que ao lado dele vive – e lado aqui é mesmo a palavra exata, pois exerce com esmero o papel de coadjuvante – a Sra. da Silva e Matta, ou melhor, Serafina Severina das Graças, esse o nome de nascença. Esposa de longa data. A única graça de Serafina, no entanto, é que ela é tão comum que não causa transtorno a ninguém. Miúda, com gestos práticos de dona de casa. Um cheiro de quem habita cozinhas. Tem os olhos indolentes e pesados de mãe aposentada. Mãos grossas de lavadeira. Fala com voz redonda. Voz de eco. Tirando isso, nada dela se sobressai. Nada nela é grito. Pelo menos, não mais.

E olha que Serafina das Graças deve ter sido – mais antigamente, a julgar pelos traços quase imperceptíveis que lhe restaram – uma mulher muito, mas muito feia, daquelas que fazem os homens torcer o pescoço, estupefatos, ao passar. Feiura trágica beirando ao despudor. Crianças e mesmo mulheres a teriam fitado com olhar grande, intrigadas, se não assustadas, e isso, sem dissimular.

Enquanto o marido discursa sobre sabores, consistências, aromas, sobre delícias crocantes e texturas que se desmancham no paladar, ela balança lá pra cá a cabeça, concordando, sentada bem macia, esfarelando com dedos grossos miolo de pão sobre o avental. Vez que outra estendia a mão e oferecia uma migalha a um velho papagaio empoleirado imóvel e mudo na gaiola. Vai que se trata de bicho empalhado, pensei. Pois invariavelmente a migalha caia ao chão da cozinha. Serafina, que tinha o olhar miúdo da velhice, certamente pouco via. Também, nessa penumbra, ou estava já meio lelé a velha? Quando me aproximei da gaiola para melhor observar o bicho – sempre me interessei por pássaros, mas como aquele, com penas assim alvas, nunca que havia visto – a dona advertiu com voz rouca: Cuidado moço, não ponha o dedo aí, ele pica. No que a ave despertou e se pôs a gritar de olhão arregalado:

– Dá o dedo! Dá o dedo! Dá o dedo!

Aproveitando a distração com o pássaro, nosso doceiro abocanhou três trufas de uma só vez. Tentou rir em seguida, mas a risada ficou de tal jeito atravessada na garganta que sofreu medonho engasgo. Pouquinho não faltou e a alma achava o caminho de saída. Mas também não foi dessa que logrou desencarnar. 

E o papagaio lá a gritar. Mecanicamente:

– Dá o dedo! Dá o dedo! Dá o dedo!

O que direi sobre Seu João, o senhor das guloseimas? 

Além de parecer um tanto mais jovem que a senhora sua esposa, pouco restou em minha memória do que disse. E o que disse foi muito naquela tarde escaldante entre prateleiras e quitutes. Mas muito mais foi também o que comeu. Pensem por tal em alguém volumoso, as bochechas, redondíssimas. Entre riso e risada que punham a tremer a enorme papada, devorou doce por doce que dona Severina havia arranjado sobre a bandeja. Uns agrados aqui para a visita, tinha ela dito fitando mais o pássaro que a mim. Creio que Seu João, por antigo costume, nem ouviu ou ignorou. Era tal a voracidade ao engolir que não pude reter a compaixão: que ferrenha penúria deve ter passado o pobre homem! E de pronto, no que leu meus sentimentos, entornou a falar de carestia, de galopante inflação, preços exorbitantes, da escassez que grassara de quando ainda garoto e que lhe roubava o sono à noite… ah, e que tivera uma irmã, Deus a tenha, pobrezinha, que fora levada pela inanição, tão raro o pão naqueles dias… E quanto mais falava mais comia, que não restou sequer farelo de biscoito pra contar o resto da história. 

Severina se ergueu num ágil salto, um tanto demais pra velhice tanta, como julguei, e já retornava solicita, bandeja cheia na mão – a terceira, se não me falha o fim do cálculo. Com números, se sabe, tenho lá meus pontos fracos.

Das abundantes palavras do doceiro, no entanto, restaram só mesmo estas migalhas. O que me encantava de espanto, me intrigava de admirar, a pulga que me coçava, era a esposa: por qual magia passara assim de ser tão único para a perfeita encarnação da cara metade?

Deve ter sido o casamento que a despiu do dom de surpreender. No rosto, o morno da vida conjugal amaciou os sulcos mais fundos. E a monotonia de estar ao lado acabou por arredondar os ângulos antes afiados. Nariz, testa e queixo desistiram de se evidenciar, recolheram-se em decoro. Pela força de caminhar ao lado, os cantos agudos acabaram se desgastando. De forma que há muito se apagaram quaisquer traços de singularidade. Se teve sinais, se teve verrugas, cicatriz, se diluíram. Toda convexa, já não era mais a feia. Mas nem a bonita, tampouco. 

Pouco ou nada restou das avessas graças da Serafina Severina. Até o nome virou apêndice. Mulher ao lado, feita assim, cisne entre outros. Ao passar, homem algum viraria o rosto, atônito. Mulheres e crianças de nada suspeitariam. E a olhares menos atentos, passava mesmo de todo despercebida. 

Ah, a mulher do dono da confeitaria? Sim. 

E nada mais? Não. Só isso.

De repente se ouve o tilintar do sino à porta de entrada. Uma mulher – um tanto descorada, me pareceu – entrou arrastando um menino sardento, o rostinho virado que só lágrima. Seu João se ergueu, se me desculpa disse ele, e retirou-se para atender os fregueses. Lá da cozinha se ouvia, entre intercalados risos e soluços de cortar alma, uma voz estridentemente alterada. Por isso, talvez, não pude deixar de ver quando a mulher tirou da sacola um pacote de jujubas e com exagerado ímpeto jogou-o sobre o balcão. Imediatamente uma chuva de gomas coloridas se esparramou sobre o chão da loja. Um poeta diria: e reluziram feito pedras preciosas…

Nisso a velha, fitando-me com olhos miúdos, fez a seguinte pergunta:

– E como vai a menina? 

– Menina? – Perguntei.

– O senhor sabe. Sua filha.

– Mas…

– Posso estar velha, Seu Jacó, mas meu nariz não me engana.

E retirou do bolso do avental uma maçã do amor embalada em papel celofane.

– Para a princesinha. – Disse.

– Como?

Mas não dizendo mais palavra, voltou o rosto novamente para a fera adormecida na gaiola.

Nada me agradou aquele tom, que na verdade, despertou desagradável recordação, só que de tão vaga, mal pude precisar. A memória me falhava quando mais necessidade eu tinha de lembrança.

Tentei perscrutar os traços, mas não soube ler os indícios: face redonda, de um rosado condescendente. Rosto mudo de si, que refletia vagamente luz e sombras de um outro rosto. Tornara-se um rosto ao lado. O rosto de fundo. Mesmo quando cansada, as linhas não traíam qualquer sentimento. De saudade, nem sombra. Tudo naufragado. Ou me engano? 

Nesse longo entretanto, nem havia me dado conta do silêncio que seguira à nossa conversa. Foi quando de repente a confeitaria ao lado inundou-se de um clarão. Esfreguei os olhos e vi. Lá vinha Seu Joãozinho, sorriso satisfeito, uma mão a palitar os dentes, a outra a erguer os interruptores em seu caminho. Tudo brilhava, tudo piscava, tudo vibrava no amarelado banho de luz. Panelões, potes e vitrines voltaram a soar de alegria. 

Foi não mais que um segundo, mas me bastou, que a iluminada cozinha revelou a existência de um espelho, grande e oval, quase de todo coberto por véu preto, a refletir num canto descoberto o rosto de Serafina. Foi breve a vista, mas encontrei. Ao lado direito da boca, quase imperceptível, uma pequena ruga mais funda não me passou despercebida: parecia tremer, sarcástica, enquanto a dona dormia. Pareceu-me que por aquela fenda minúscula escapavam faíscas que vinham de trás da máscara de mãe, de esposa e de dona de casa zelosa. De todas as várias camadas que cobriam sua individualidade cruel. Eis os resquícios da terrível, reconheci num calafrio.

Joãozinho retomou de pronto a longa fala, mas o interrompi sem rodeios, alegando o tardio das horas, o resto da entrevista ficaria para outro dia. Certamente, certamente, respondeu sorridente o doceiro, também, sendo já quase meia-noite… E desatou a rir. O que? Me despedi, até mais ver, até mais ver, e saí quase correndo porta afora. O embrulho com a maçã gentilmente presenteada pela malvada atirei ao longe, mas tal a violência que acabou espatifando uma vidraça… juro para vocês ter ouvido ecoar lá dentro da ruína abandonada uma tremenda gargalhada… No próximo segundo eu estava no carro torcendo a chave da ignição. E era uma vez o Jardim das Macieiras. 

Quanto ao Joãozinho dos doces?

Se não morreu, deve estar vivo até hoje.

(Uma segunda entrevista jamais houve)

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