Susto Mortal

MEU SUSTO FOI IMENSO. Há muito que eu desejava arranjar um tempo e, também, um estado de espírito que me propiciassem iniciar a leitura do livro. Afinal se trata de um dos clássicos da literatura universal do século XX, um calhamaço de quase 700 páginas e, não só por isso, um dos livros menos lidos da tal literatura, mas também por sua temática densa e estilo inconvencional. Um daqueles estilos que exigem do leitor uma concentração inumana e um conhecimento geral quase diabólico. Mas enfim, dei-me o presente de enfrentar o desafio. Estava na hora, já que minha consciência também pesava, incitada pela dedicatória escrita à mão logo na primeira página: Bons momentos de leitura! Bom 1999, etc. Um grande abraço. Os então votos de sucesso e alegria acabaram se tornando, com o passar das décadas, uma acusação silenciosa… Bom, houve também outros motivos que me animaram a criar a coragem necessária, mas não veem ao caso aqui. O susto é de outra natureza, bem mais assombrosa, obscura. De início deixei meus olhos fluirem pelas longas sentenças, embutidas umas nas outras, formando um mosaico que resulta em parágrafos quilométricos de tirar o fôlego… A temática e o estilo começaram a me envolver, me aliciar, despertavam em mim admiração. E como de costume, quando leio frases que provocam em meu âmago reações quase físicas, eu as sublinho e, às vezes, para não esquecer futuramente o que me tocou tão profundamente, faço anotações nas margens. Todavia, como era de se esperar com esse autor, o leitor é travado – o mais tardar no 10º capítulo – por longos parágrafos de confusas discussões sobre temas abstratos em um linguajar antiquado, e ainda por cima embolado e pretensioso. Os hispanos diriam aqui ampuloso. Esses discursos não só irritam, mas nos afastam inutilmente do enredo sem contribuir muito para sua compreensão. É nesses momentos que uma pausa indignada, vingativa, se faz necessária. E assim foi comigo. Pois foi aí, ao retornar de uma dessas interrupções, já meio esquecido do motivo do rompimento e realmente disposto a perdoar, que foi se instalando o choque. Um choque insidioso. No princípio pensei que fosse apenas um esquecimento (acontece), a seguir já achei estar lendo um livro já lido por alguém, mas em breve fui deparado com o inexplicável. E o inexplicável de si mesmo é monstruoso, pois nos deparamos com um eu-outro: o desconhecido em nós. A razão até relutou, mas teve de se dar por vencida. Ao retomar a leitura, o rancor há muito dissipado, logo me deparei novamente com passagens tocantes, mas também com os primeiros deslizes, pois eu não podia sublinhá-las: já vinham sublinhadas, a lápis, manualmente. Bom, paciência, pensei, alguém, talvez meu amigo, tivera a mesma ideia que eu. Mas as marcações se repetiam, justamente nos momentos de maior inspiração. E o traço (meu Deus, o traço!), às vezes reto, às vezes ondulado, não me era estranho. E aqueles pontos de exclamação e, aqui e lá, aqueles pontos de interrogação me pareciam familiares demais para serem ignorados. Fui tomado de um desconforto: Como pude esquecer já ter lido essas páginas? Mas, por mais que eu me esforçasse, não havia em minha memória um resquício se quer de lembrança, um alívio, um esclarecimento. Nem de dez dias atrás, nem de dez anos atrás, muito menos de duas décadas atrás. Impossível eu ter lido aquilo antes. Ainda assim, aquela sensação desconfortável foi emergindo, se instalando na dúvida, transformando-a em certeza: reconheço esses rastros. Foi então que decidi folhear o livro em busca da confirmação e eis que, sim, lá estava ela, inegável: aqueles traços eram meus! Como pode que cada página fosse para mim uma surpresa, a história aguçando minha curiosidade a cada linha, se em capítulos posteriores, bem posteriores inclusive, não só se repetiam minhas marcações, isso até com cores diferentes, como costumo fazer, mas eu, eu mesmíssimo, havia aqui e lá acrescentado comentários às margens do texto? De fato eu estava ali, naquelas letras inclinadas que misturam cursivas com de forma, os erres e os ges só meus, marca registrada, prova contundente. E isso em páginas ainda não tocadas por meus olhos! O que havia suprimido, não, removido, eliminado, deletado, esse livro de minha existência? Com certeza não foi a primeira vez que voltei a ler um livro que já havia lido. Mas em outras situações a leitura, à determinada altura (e mesmo sem linhas sublinhadas ou notas manuais), despertava aquela impressão intrigante de déjà-vu que me levava infalivelmente a reconhecer o texto. Aqui, não. Nem mesmo minha letra, aquelas palavras, aqueles comentários realizados por minha própria mão em momentos de surpresa, fascínio, foram capazes de arrancar o cadáver – as cinzas que fossem – de sua funda sepultura: nada, niente. Você se vasculha do sótão ao porão, abre todos os baús e… nada. Vazio. Só resta o susto, o susto de ser surpreendido por mim mesmo de uma forma imensamente desagradável. A revelação de que mesmo meus momentos mais singulares, de entusiasmo e de íntima experiência podiam virar pó, que tenham se dissolvido em miríades de partículas invisíveis, irrevogavelmente carregadas pelo vento para o infinito… Quem era esse eu que um dia lera este livro? Um estranho, um completo desconhecido, um outro. E assim só resta uma certeza, a certeza de que em mim cresce um esquecimento, o caçula da morte roendo gradativamente o cerne do que pensei ser…


Uma resposta para “Susto Mortal”.

  1. Avatar de Jeremias Oliveira
    Jeremias Oliveira

    Muito bom!!!

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: